A mordaça reforçada
24 de maio de 2013 | 2h 08
O Estado de S.Paulo
A coincidência dificilmente poderia ser mais
amarga. Na quarta-feira foi sepultado em São Paulo o corpo do jornalista Ruy
Mesquita, o diretor do Estado que fez história pelo destemor de seu combate
pela liberdade de imprensa nos anos de chumbo da ditadura militar. No mesmo
dia, em Brasília, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) enterrou as
esperanças de que afinal invalidaria, como tudo levava a crer, a decisão
liberticida tomada há praticamente quatro anos pelo desembargador e atual
presidente da Corte, Dácio Vieira.
No que decerto foi o golpe mais virulento já
desferido desde o restabelecimento da democracia no País contra o direito da
sociedade de ser informada dos atos de figuras públicas que firam o interesse
coletivo, em julho de 2009 Vieira proibiu este jornal de divulgar as evidências
colhidas pela Polícia Federal, no curso da Operação Boi Barrica (depois
denominada Faktor), de ilícitos cometidos pelo grupo empresarial de Fernando
Sarney, filho do presidente do Senado à época, José Sarney.
No mês anterior, o Estado revelara a existência de
mais de 300 atos secretos no Senado. O escândalo atingiu em cheio o mais
longevo coronel da política brasileira. O clã que ele encabeça manda e desmanda
no Maranhão há meio século. Os seus tentáculos alcançam outros Estados da região,
entre eles o Amapá, para onde o oligarca transferiu o seu domicílio eleitoral.
Seria uma ingenuidade monumental supor que ele desconhecesse, para não dizer
outra coisa, os negócios tidos como irregulares de seu primogênito.
Do mesmo modo, parece pouco provável que a censura
prévia ordenada pelo desembargador Vieira, a pedido do empresário, não tivesse
sido influenciada por suas duradouras ligações pessoais com o soba maranhense.
A mordaça aplicada ao jornal - que está para completar 1.400 dias - foi condenada
reiteradas vezes por juristas e organizações representativas da imprensa do
Brasil e do exterior. Nesse meio tempo, Fernando Sarney desistiu da ação, o que
não o impediria de voltar à carga quando lhe aprouvesse. Também por isso, mas
principalmente para firmar jurisprudência, o Estado insistiu no julgamento do
mérito da causa.
A surpreendente decisão de anteontem, por 3 votos a
0, da 5.ª Turma Cível do TJ-DF não é o fim da linha. A defesa do jornal aguarda
a publicação do respectivo acórdão para recorrer ao Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). "Isso não vai passar em
branco", diz o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira. Nem poderia: na
base do atentado à liberdade de expressão está a gritante falácia de que o Estado
não poderia estampar os fatos levantados pela Polícia Federal a que tivesse
tido acesso porque o inquérito era sigiloso.
Essa aberração não pode prevalecer. O órgão
noticioso que leva a público apurações reservadas sobre presumíveis ações
lesivas ao bem comum - como traficâncias que envolvam o destino dos recursos do
contribuinte - não é nem se torna "dono" do segredo. Este, por
definição, é o agente estatal responsável por sua guarida. É a posição do STF.
Se, porventura, o material repassado a jornalistas se revelar falso, o veículo
que o tiver difundido estaria sujeito a responder por isso na Justiça. O que é
inconcebível numa democracia é tolher a livre circulação de informações - um
direito inalienável da sociedade.
Melhor do que ninguém, talvez, o então ministro do
STF Carlos Ayres de Britto foi ao cerne da questão quando esclareceu que
"não há no Brasil norma ou lei que chancele poder de censura à
magistratura". Diante disso, é completamente irrelevante a outra alegação
invocada para silenciar o Estado - a decisão do STJ que declarou ilícitas as
provas da Operação Boi Barrica que levaram ao indiciamento de Fernando Sarney
por uma profusão de delitos. Outro absurdo ainda é a ação tramitar em segredo
de Justiça, o que impede que se conheçam os fundamentos do deplorável veredicto
do TJ-DF.
Tem-se, em suma, uma cadeia de atos frontalmente
contrários ao espírito e à letra da Constituição. E, o que é mais alarmante,
praticados por servidores togados do Estado Democrático de Direito que o País
penou para implantar e eles pisoteiam.
Na FOLHA DE SÃO PAULO as letras são em preto, mais a cor mais indicada para atos dessa naturesa é o vermelho.
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